21 de ago. de 2018

A OPINIÃO DE AIRTON DE FARIAS

"Sim, houve ditadura, general. História é embate de interpretações, de memórias, de construções. O candidato ao governo do Ceará, General Theophilo, disse ao jornal O Povo que não houve ditadura no Brasil. Retoma um argumento difundido pelos governos militares e por apoiadores da ditadura nos anos 60, 70 e, ainda, 80. Enfatiza-se que o regime autoritário (1964-85) se dera para garantir a democracia e evitar a implantação do comunismo no Brasil e que os 'excessos' cometidos pelos militares deram-se dentro da guerra que era travada contra os agrupamentos armados de esquerda, igualmente responsáveis por vários crimes. A fala do General apresenta erros que os historiadores chamam de anacronismo, ou seja, transplanta para o passado valores peculiares de outra época. Nos anos 60, a democracia não era um valor universal. As tradições e as práticas políticas do Brasil não foram estruturadas em valores democráticos. Ao contrário, o autoritarismo é uma das principais características da sociedade brasileira. De modo geral, às vésperas de 1964, as esquerdas não eram democráticas, muito menos as direitas e o resto da sociedade. A democracia como importante valor político se difunde, para valer, a partir da segunda metade dos anos 70. Não por acaso, neste momento foi reconstruída uma memória de que a luta das esquerdas era para instaurar a democracia (tinha, na verdade, um projeto de conquista do poder) e diversos setores como imprensa, Igreja, OAB, etc., resistiam à ditadura, quando na verdade, haviam apoiado o golpe de 64 e hipotecado apoio ao regime por anos. Hoje, historiadores questionam até a ideia de 'porões da ditadura'. Muita gente sabia o que estava acontecendo. A repressão às esquerdas foi uma forma da ditadura angariar apoio de segmentos da sociedade. Historiadores preferem usar o termo ditadura civil-militar, porque o regime contava com apoio e endosso de vários setores civis. Afirmar que em 1964 havia uma ameaça comunista parece algo historicamente questionável. Herdeiro do getulismo, Goulart foi um dos presidentes mais ricos do Brasil. Comparar Goulart com Fidel Castro parece algo grosseiro. Goulart defendia, sim, algumas tímidas reformas sociais e medidas de nacionalismo econômico, o que incomodou a setores mais abastados e políticos, os quais mantinham grande contato e influência dentro dos quarteis. Por aí o golpe de 64 foi articulado, sob o pretexto de combater o comunismo (era a época da Guerra Fria) e a corrupção (velha muleta da política nacional). 
Não deixa de ser curioso como hoje busca-se supervalorizar a força dos grupos de esquerda armada dos anos 60 e 70. Estes foram derrotados em pouco tempo, por suas fragilidades e isolamento político, visto que não contaram com o apoio do grosso da sociedade. Se grupos de esquerda pegaram em armas, praticaram assaltos a bancos, sequestraram, etc., isso não implica em justificar o que a ditadura militar fez, ao sistematicamente desrespeitar direitos humanos, torturar, eliminar adversários, espionar a sociedade, etc. Os militantes de esquerda, com seus ideais e equívocos, pagaram um preço alto por sua empreitada, mortos que foram, torturados ou condenados a cumprir longas penas, como aconteceu no presídio cearense Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS) e outros Brasil afora. Os crimes praticados por torturadores, por outro lado, ficaram impunes, beneficiados que foram pela Anistia de 1979. No Brasil, nenhum torturador foi punido e não se procurou difundir entre as forças militares uma reflexão crítica sobre o que se deu nos anos 60 e 70. Essa, por sinal, é uma coisa que incomoda muito dentro dos quartéis. Presos dentro do corporativismo das Forças Armadas e pressionados pelos 'velhos', novos militares sentem-se incomodados em levar nas costas os fantasmas da ditadura. Os erros das esquerdas não devem ser usados como desculpa para justificar o autoritarismo reinante e a repressão feita pela ditadura civil-militar. Na Europa, em países como Itália e Alemanha, por exemplo, houve grupos guerrilheiros nos anos 70 e nem por isso aqueles países viraram ditaduras ou realizaram sistemáticos e difusos desrespeitos aos princípios mínimos de direitos humanos. Não era preciso uma ditadura para combater os grupos armados de esquerda, como deu-se no Brasil.
Sem falar que nem todos os perseguidos eram adeptos da tática de guerrilha. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) 'esvaziou' após 1964, exatamente por não aceitar a luta armada. Mesmo assim, teve inúmeros de seus membros presos e torturados, sobremaneira após meados dos anos 1970, depois do desbaratamento das organizações armadas – isso porque a burocracia da repressão necessitava justificar sua existência. Muitos cidadãos tiveram suas vidas pessoais, carreiras profissionais, trajetórias acadêmicas prejudicadas por denúncias falsas, sem que tivessem qualquer relação com organizações políticas. Um dos aspectos mais trágicos de um regime de exceção é que delações e acusações, sem garantia do legítimo direito de defesa e contraditório, podem ser usadas para perseguições e exposições de pessoas. Uma das pessoas, por exemplo, espionadas pelo SEI (Serviço Estadual de Informação) foi Tasso Jereissati, cujas viagens ao exterior chegaram a ser alvo de anotações dos arapongas, conforme documento encontrado no Arquivo Público do Ceará. Tasso, no começo dos anos 80, era um dos líderes dos chamados Jovens empresários do CIC, base do projeto e grupo político que se tornou dominante no Ceará posteriormente. Um dos motes da campanha de Tasso nas eleições de 1986 era a dura crítica aos coronéis (César, Adauto e Virgílio) e à ditadura, que, em sua opinião, haviam mergulhado o Brasil e o Ceará no caos."

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