"A gente é diferente quando sente.
Já não sei se é importante ter quem vá comigo até o 'final dessa rua'. Mas sei o quão importante é sentir-se livre, sentir-se bem, sem pressão, sem a obrigação de ter alguém do lado.
Amanhã, meus pais fazem 65 anos de casados. Ela já não fala, não caminha, não faz nada, sem ajuda de outra pessoa… Mas segue meu pai com os olhos e sente sua presença. Quando convidamos papai pra sair, diz: 'Hoje não. Sylvia não está bem. Quando ela melhorar, nós vamos a Mossoró'. Faz tempo que ela não está bem (e não vai ficar), mas não é assim que ele sente. Que amor é esse que não cansa, não lamenta, não cobra, não desanima e ainda consegue fazer planos, como se fossem um só?
Recentemente, juntamos os dois novamente, num mesmo quarto, em melhores condições. Foi contagiante ver a alegria dele, deitado em sua rede, velando o sono de minha mãe, e cantando: 'Hum, hum, hum!'.
Há um mês, saímos pra passear e mamãe foi com a cuidadora, em um táxi, próprio pra cadeirantes. E ele, comigo. No retorno, achou melhor 'ir com Sylvia'.
Não quero, nem de longe, decepcionar os amantes, mas minha capacidade de amar tem estado sempre, ou quase sempre, na companhia dos amigos, dos pais, do trabalho e da pressa da vida, batendo à minha porta. O meu prazer tem se dobrado apenas às ondas da Redonda, às conquistas do filho, à taça de um bom vinho, à volta pra casa, à sensação de me entregar aos romances e ao cheiro de um lençol limpinho. Às vezes, me perguntam se o que escrevo é sobre meus pais, sobre o Alzheimer. Não que isso seja menor, mas não alcança a extensão do que eu sinto, ao escrever. Não sei sobre o que ou sobre quem eu escrevo. Só escrevo, apago, acho feio, acho bonito. O amor na juventude é sublime mas, sobre ele, não sei falar. Gostaria, sim, de escrever sobre o tempo, as dores, as perdas, a memória, a ausência dela e, ainda assim, sobre saber amar alguém."
Carla é de Mossoró e reside em Fortaleza