sábado, 21 de setembro de 2013

DA SÉRIE BOM TEXTO - (II)

   "Meus afetos por Fortaleza, pelo Ceará, são declarados. Não rejeito a tribo onde fui parido nem a mistura de sangue do índio com o português, o negro, o judeu e o mouro que deram no caboclo pardo que sou. Não me envergonho de ter rebentado na parte mais semiárida do Brasil, gleba que por muito tempo foi ignorada pelo invasor lusitano e o capitão-mor de Pernambuco. Tenho história. 

  Mas ando meio impaciente com a cidade que me falta. Com as calçadas que não posso andar... Com os parques verdes que nunca existirão... Com o ônibus que não voltarei a pegar... Com o trânsito que me aperreia... Com a notícia que um fulano de tal esfolou alguém e explodiu pela segunda vez o mesmo banco... Ando sem paciência com uma elitezinha tacanha que se acha dona até da alma das ruas e está correndo um abaixo assinado para acabar com a ciclovia no miolo da Aldeota. Ora, ora, deve ser o mesmo povo que cola na Hilux o adesivo #simviadutos e acha um absurdo a morte dos peixes do finado rio Tiete. E se deslumbra porque São Paulo tem um Ibirapuera ou em Nova York vivem um Central Park e esquilos.


  Mesmo magote de gente fresca que leva o cachorro para passear e não se digna de apanhar a merda do animal. Vejam, vejam... Os cães (confinados) de estimação têm o direito de ir e vir nas calçadas, mas as levas de operário da construção civil que vão e vêm de bicicleta não podem usar a ciclo-faixa da Ana Bilhar! Coméquepode, meu Deus?


  E a desculpa nojenta, a grita, é assim: com a faixa de trânsito exclusiva para o canelau que usa bicicleta, os condôminos da Aldeota não poderão mais estacionar os automóveis em frente ao mar de prédios! E mais ainda. Quando chegarem as visitas para um chá ou vinho, elas não terão onde parar as carruagens! Tadinhas. É inacreditável o argumento, é inominável a arrogância.


  E confesso, estou fazendo um esforço medonho para não ser preconceituoso com ninguém. Não sou da ala que defende que ricos e milionários não têm direito à cidade. Não. Fortaleza, qualquer caverna do Ceará, tem de ser cada vez mais plural, mais pública, mais coletiva, mais tribo.


  Possa ser que a semana não tenha me sido leve. Que uma amiga estimada tenha ido embora pra sempre e me façam falta os almoços em Messejana e seus 96 anos... Pode ser que eu esteja de TPM (homens também tem)... Mas estou por uma peinha. Sinto-me desconfortável na cidade onde mais tenho afetos e não futuro deixar seu mar nem me apagar de seu Sertão...


  Mas não aguento mais motoqueiros trafegando nas calçadas, lixo em toda esquina e asfalto que se recapeia a cada seis meses e os buracos, ou mondrongos, não desaparecem de propósito... Também não tenho mais tolerância para delegacias que fazem de conta que funcionam, hospitais populares inviáveis e escolas públicas sofríveis... (...)."

  (DT)

  DO BLOGUE: O texto do também escritor Demitri Túlio vale pra muitas cidades e deveria fazer parte da reflexão sobre elas...

Nenhum comentário:

O TRANSPORTE QUE EXISTE. PROS OUTROS