Leonardo Mota (I)
Rachel de Queiroz
17 Abril 2010 – O POVO (Publicada originalmente em 15 de janeiro de 1948)
Rachel de Queiroz
17 Abril 2010 – O POVO (Publicada originalmente em 15 de janeiro de 1948)
Morreu o meu amigo Leonardo Mota, o nosso querido Leota, o que é, realmente, uma grande tristeza. A obrigação de morrer pode ser um alívio para quem morre – e para ele talvez o fosse, maltratado pela doença há tantos anos -, mas é bem melancólico para os que ficam. É como o soldado que, caindo, se livra da guerra e das suas misérias, enquanto os companheiros que continuam lutando, além das misérias da guerra, ainda sofrem a falta do camarada perdido. E, ditas estas primeiras palavras – vede como era forte a personalidade humana desse que foi embora -; à notícia de sua morte o que todos lamentam é o indivíduo, o velho amigo perdido; e só depois de o chorar como simples criatura nossa irmã, é que recordamos o brasileiro ilustre que ele foi, o mestre indisputado do nosso folclore, e a importância da sua obra; e realizamos quão dura perda a morte desse homem enfermo, que durante anos engoliu amarguras e dores no fundo de sua rede, representa para a inteligência brasileira.
Talvez poucos, talvez nenhum na sua especialidade, tenha contribuído mais para o aproveitamento e estudo do folclore nacional. Leonardo Mota era desses que acreditam em colher o fruto na árvore e não comprá-lo embalsamado em caixetas de papelão. Ia apanhar a cantiga na boca dos cantadores, sem intermediário de ninguém, entendendo-se com os poetas sertanejos de igual para igual, por eles respeitado e querido. Nada tinha em comum com os nossos sertanejos de gabinete que entendem muito de cantadores e cangaceiros de retrato, especialistas em material de segunda mão, que estudam e pontificam servindo-se de textos colhidos sabe Deus onde e como; Leota era daqueles trabalhadores humildes e obstinados que só compreendem a obra feita com as próprias mãos. Internava-se durante meses e até durante anos por esse sertão de meu Deus, enchendo cadernos, infatigavelmente, sempre de lápis na mão, ouvindo, registrando, selecionando, com perícia exemplar, com honestidade exemplar, e dele jamais se soube dum texto enxertado, ou “melhorado”, de uma improvisação de preguiçoso ou de vaidoso para suprir alguma falha.
Os cantadores, que são os intelectuais da cantiga, consideravam alta honra serem por ele ouvidos, a mais de um cantador ouvi gabar-se em rima, num desafio, entre outras vantagens excepcionais, que “já andava nos livros do doutor Leota”. Pois, “andar nos livros de Leota”, representava para eles a consagração definitiva, uma espécie de doutorado de repentista. E por ser assim amado e estimado pelos seus modelos, podia colher o material de estudo na sua beleza mais primitiva e genuína, como o encantador de passarinhos que consegue escutar o canto dos mais ariscos voadores no próprio instante espontâneo em que é improvisado. A contribuição de Leonardo Mota foi, pois, inegavelmente preciosíssima para o estudo e aproveitamento do imenso material folclórico por ele colhido e posto em livros, durante algumas décadas de trabalho; e contudo, grande também é a contribuição indireta dessa obra na formação da moderna linguagem literária do grupo de escritores do nordeste. Ele foi como que uma fonte viva da língua para nós todos, proporcionando-nos elementos de renovação, de enriquecimento, pondo-nos em contacto direto com a esquecida ou desprezada linguagem do povo, devolvendo-nos a força da terra, debilitada por tantos anos de pedantismo e preocupações helênicas e promocionais. Foi ele assim para nós uma espécie de precursor e mestre, e muitíssimo lhe devemos.
Do Blogue do Plínio Bortolotti, diretor institucional do O Povo
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