O PERIGOSO MOMENTO BRASILEIRO, na análise croniquesca de Romeu Duarte, ex-superitendente do Iphan - CE, no O Povo (onde é colunista):
O OVO DA SERPENTE
"Eu bem os conheço, meu caro, minha cara. O ar comedido, que
rapidamente se transforma numa máscara colérica, expressão de quem
pratica uma honestidade seletiva. A melhor tradução do seu moralismo
capenga é a lata de cerveja jogada na rua pela janela do carrão preto,
que logo mais será estacionado, sem cerimônia, sobre a calçada. A
expressão de asco reservada àqueles que já se acostumaram a ser tratados
como invisíveis. A consideração da existência dos pobres como algo
absurdo, uma proliferação de males sem fim, própria dos ratos e demais
pestes. O sujeito que nasceu, cresceu, reproduziu-se e morrerá ruim é o
germe do País que não presta e não tem jeito. O inato do ser, ponto.
Morra de fome ou coma caviar, a pessoa é. Vai encarar?
Eu bem
os conheço, meu caro, minha cara. Inimigo bom é inimigo morto. Aliás,
inimigo porque diferente de mim, não pertence ao meu grupo de contatos
na rede social, ao meu partido, ao meu clube, à minha torcida
organizada. Aquele filósofo é quem tinha razão: 'o inferno é mesmo o
outro', a alteridade é intolerável. No máximo, cada qual no seu quadrado e
bem longe de mim, de minha muralha, da minha cerca elétrica, do
revólver do meu segurança, do meu cruel pitbull. E nem vem com esse papo
de amor no arco-íris, de chance ao pivete, de liberdade religiosa, de
raças abraçadas, que não tem. Meus atentos representantes nas casas
legislativas em todo canto darão cabo dessa pouca vergonha. Meus caros,
às favas os escrúpulos! Brasil, ame-o ou deixe-o! Eu bem
os conheço, meu caro, minha cara. O prazer em fazer sangrar alguém em
praça pública até a morte, sem dó nem piedade, mesmo que o castigo
aplicado ao desafeto volte-se contra si próprio lá na frente. A sensação
de retrocesso generalizado em todas as áreas, resultante da total falta
de conhecimento da história deste chão e deste povo e da consequente
dificuldade de leitura da realidade. Claro, e muita manipulação
oportunista desse estado de idiotia. Daí o achincalhe, o desrespeito, a
desqualificação, a perseguição, o ódio. Numa palavra: o fundamentalismo
cara-de-pau brazuca, a serviço, sabemos todos, de que e de quem. Uma
nova doutrina jurídica que prende, julga e condena sem provas. Olavo de
Carvalho, no andor, chora de rir.
Ocorrem-me estes lúgubres
pensamentos enquanto me encontro no bar de fé, na mesa de sempre, na
tarde de um sábado boêmio. À minha volta, dezenas de pessoas comentam em
voz alta os últimos acontecimentos. Se os dissensos dão-se às pencas,
os consensos não enchem um dedal. Discordâncias, desencontros,
discussões, desavenças, agressões, os palavrões são vírgulas nas falas.
Parece que esquecemos como cortejar a Dona Divergência, já que a ordem
unida não é nem nunca foi o objetivo de qualquer debate. Súbito, alguém
se levanta e, dizendo-se farto daquela conversa e, para não sair no
braço, manda passar a régua, que eu não sou fi duma égua para ouvir calado
tanto besteirol. Já vi esse filme triste. O monstro, mais uma vez, está
entre nós."
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