"Se você tivesse que ganhar a vida com um prato típico do Ceará, em qual você investiria? Algumas vezes fiz-me essa pergunta ao avaliar a hipótese de ter que sobreviver fora do meu lugar de origem, contando apenas com minha história e memória cultural. Receita simples, o baião de dois seria minha escolha.
Mais do que um preparado em que se leva o arroz para cozinhar no caldo do feijão já pronto - tempera-se com toucinho, cebola, pimenta, alho e cheiro verde, tudo finalizado com generosos pedaços de queijo coalho e nata -, o baião de dois conta das nossas raízes, da busca por sustança diante do desprovimento no sertão, fala de privação e resiliência.
O 'de-comer' nos une enquanto grupo, não somente pelo sabor. Na medida em que partilhamos procedimentos e experiências, a comida nos projeta para os demais como semelhantes que somos. Talvez por isso, mesmo diante de tantas urgências dos dias atuais, ando às voltas com esquisitices de quem quer facilitar padronizações em detrimento de elementos regionais ricos em significado. Não bastasse as descaracterizações travestidas de novidade, deram para trocar insistentemente os nomes das coisas. De uns tempos para cá, na padaria não se vê mais bolo de macaxeira. Tomou o seu lugar um pedante bolo de aipim. Ao invés de jerimum, querem nos vender uma irritante abóbora. Para quem já achava demais ter o lanche ocupando o espaço bonito e sonoro da merenda, outro dia tentaram me convencer a levar, junto do galeto de sábado, um tal de 'Arroz F' ao invés do baião de dois. Intrigada com o espanto da atendente ao ouvir um 'agora pronto! não levo com esse nome', quis desabafar com um amigo e ele lembrou Shakespeare: 'A flor que chamamos de rosa se outro nome tivesse ainda teria o mesmo perfume'. Será? Longe de mim fazer emboança, mas pelejo pra desaprender o aprendido com meus pais e avós e não tem jeito. Ainda assim, custa-me ensinar ao meu neto, visto que são muitos os ingredientes a desunerar esse ensaio de identidade. Eu, arigó de nascença, enxergo boniteza em cada palavra, em cada expressão fundada nas nossas peculiaridades alencarinas. E digo mais: cuscuz com leite, bruaca, tapioca, mungunzá; rapadura, bolo mole, alfinim; caju, cajarana, seriguela, cajá, umbu, jambo, sapoti; piaba, peixada, caranguejo, camarão, lagostim; paçoca, feijão verde, carne de sol, manteiga de garrafa, buchada, sarrabulho, baião de dois com 'bife do oião'."
Maísa Vasconcelos, jornalista e radialista do Grupo do O Povo
Mais do que um preparado em que se leva o arroz para cozinhar no caldo do feijão já pronto - tempera-se com toucinho, cebola, pimenta, alho e cheiro verde, tudo finalizado com generosos pedaços de queijo coalho e nata -, o baião de dois conta das nossas raízes, da busca por sustança diante do desprovimento no sertão, fala de privação e resiliência.
O 'de-comer' nos une enquanto grupo, não somente pelo sabor. Na medida em que partilhamos procedimentos e experiências, a comida nos projeta para os demais como semelhantes que somos. Talvez por isso, mesmo diante de tantas urgências dos dias atuais, ando às voltas com esquisitices de quem quer facilitar padronizações em detrimento de elementos regionais ricos em significado. Não bastasse as descaracterizações travestidas de novidade, deram para trocar insistentemente os nomes das coisas. De uns tempos para cá, na padaria não se vê mais bolo de macaxeira. Tomou o seu lugar um pedante bolo de aipim. Ao invés de jerimum, querem nos vender uma irritante abóbora. Para quem já achava demais ter o lanche ocupando o espaço bonito e sonoro da merenda, outro dia tentaram me convencer a levar, junto do galeto de sábado, um tal de 'Arroz F' ao invés do baião de dois. Intrigada com o espanto da atendente ao ouvir um 'agora pronto! não levo com esse nome', quis desabafar com um amigo e ele lembrou Shakespeare: 'A flor que chamamos de rosa se outro nome tivesse ainda teria o mesmo perfume'. Será? Longe de mim fazer emboança, mas pelejo pra desaprender o aprendido com meus pais e avós e não tem jeito. Ainda assim, custa-me ensinar ao meu neto, visto que são muitos os ingredientes a desunerar esse ensaio de identidade. Eu, arigó de nascença, enxergo boniteza em cada palavra, em cada expressão fundada nas nossas peculiaridades alencarinas. E digo mais: cuscuz com leite, bruaca, tapioca, mungunzá; rapadura, bolo mole, alfinim; caju, cajarana, seriguela, cajá, umbu, jambo, sapoti; piaba, peixada, caranguejo, camarão, lagostim; paçoca, feijão verde, carne de sol, manteiga de garrafa, buchada, sarrabulho, baião de dois com 'bife do oião'."
Maísa Vasconcelos, jornalista e radialista do Grupo do O Povo
Nenhum comentário:
Postar um comentário