TEXTO DE CÂMARA CASCUDO NA CONTRACAPA DO DISCO "LUIZ GONZAGA", 1973 (Emi-Odeon):
"LUIZ GONZAGA é uma legitimidade do sertão tradicional. Sua inspiração mantém as características do ambiente poderoso e simples, bravio e natural, onde viveu. Não imita. Não repete. Não pisa rastro de nome aclamado. E ele mesmo sozinho, inteiro, solitário, povoando os arranha-céus com as figuras imortais do Nordeste, ardente e sedutor, fazendo florir cardeiros e mandacarus, levantando os mormaços dos tabuleiros através das cidades tumultuosas onde permanece.
Fui menino no Sertão, 1909-1913. Tenho na memória o timbre das grandes vozes infatigáveis, ímpeto de guerrilhas no açodamento dos 'crescendo', nasalamente infalível na modulação para 'fechar' na dominante. Sertão sem rodovias, luz elétrica, gasolina. Vaqueiros, cantadores, romeiros de São Francisco de Canindé, Juazeiro, Santa Rita dos Impossíveis. Poeira heroica das feiras e das vaquejadas. Viola do rojão de dois-por-quatro, sanfonas de oito baixos, pobreza milionária na emoção irradiante, inexplicável alegria das coisas suficientes.
Luiz Gonzaga é um documento da Cultura Popular. Autoridade da lembrança e idoneidade da convivência. A paisagem pernambucana, águas, matos, caminhos, silêncio, gente viva e morta. Tempos idos nas povoações sentimentais voltam a viver, cantar e sofrer quando ele põe os dedos no teclado da sanfona de feitiço e de recordação.
Não posso compará-lo a ninguém. Luiz Gonzaga é uma coordenada humana que as ventanias urbanas fazem vibrar sem modificação. Não é retentiva, artificialismo, sabedoria de recursos mentais 'aproveitando' o sertão. Ele próprio é a fonte, cabeceira e nascente de suas criações. Sertão é ele, como a Bretanha está no bretão e a Provença em Mistral. Bem logicamente, a sua terra muda a fisionomia pelas mãos de ferro do Progresso. Técnicas, máquinas, combustíveis, sonhos novos. Mas, pelo lado de dentro, o Homem não muda, como a sucessiva aparelhagem em serviço do seu interesse. Luiz Gonzaga presta-nos, a nós, devotos das permanentes culturais brasileiras, a colaboração sem preço de uma informação viva, pessoal, humana.
Sanfoneiro do sertão, brasileiro do Brasil, os que amam terra e gente nativa te saúdam na hora em que tua voz se eleva, vivendo a sensibilidade profunda da tu'alma sertaneja..."
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO - Natal, janeiro de 1973.
Fonte: Ludovicus - Instituto Câmara Cascudo.
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