21 de jun. de 2020

O QUE O DEMITRI DIZ AQUI VALE PRA MUITAS CIDADES (QUE TAMBÉM ATACAM A PRÓPRIA MEMÓRIA)

O labirinto do Redentorista
Demitri-Tulio, do O Povo, crônica 21 de junho de 2020
Há algum tempo tenho deixado de choramingar por casarões que vão abaixo em Fortaleza. Vi que nesse pranto (besta), iria gastar um choro que também preciso acionar para outras histórias.
Fiquei até pensando se sou, mesmo, abestado para chorar. Chorar por um casarão velho onde nunca dormi lá? Chorar por uma cidade sem fio da meada e incapaz de caiar pontes sustentáveis entre quem passou por aqui, quem existe e quem ainda nem chegou?
Quais memórias eu teria de um bangalô antigo, ali na quase esquina entre Santos Dumont com Rui Barbosa? Hoje, transformado pelo supermercado São Luiz em um estacionamento infeliz, sem árvores, sem pássaros, sem o ventinho soprado de dois pés de jambo derrubados.
Para que servem as memórias? Pra alimentar nostalgia? Para criar um universo paralelo, que talvez ainda esteja acontecendo, na vida longeva de quem teve a sorte envelhecer ou o desprazer de ser xingado de passado?
Quando a ArtFlex Engenharia e o Banco do Brasil esquartejaram a "Mulher Rendeira", escultura de José Corbiniano Lins, fiz matéria. Era como se ela tivesse morado lá em casa, um luto inexplicável. Talvez porque achasse a estátua um retrato de minha tia Francirene.
Uma mulher esguia, pescoço meio agirafado, sentada na esquina da Duques e Barões. Era a imagem presente de tia Francirene, moça que migrou para São Paulo e nunca mais a vi desde algum ano da década de 70.
A "Mulher Rendeira" também me viu passar na calçada da Barão do Rio Branco, quando fui "office boy" no Centro de Fortaleza.
Memória é assim, um fio de Ariadne. Um labirinto do Minotauro barrigudo que sequestrou Tia Anastácia da televisão lá de casa. E eu acreditei, claro, naquela tarde lobatiana, em 1978. Quis ser Teseu, ir salvar a única fada preta que conheci e ainda hoje vem ter comigo.
As recordações da cidade, talvez, sejam os cipoais de Dédalo e ele a brincar de apagá-las quando menos esperamos. Aquele casarão bonito? Qual? Aquele da esquina da rua... Não lembro o nome da rua (estala os dedos)? Que uma moça bonita ficava na janela? Moça? Sim, filha da dona menina... que vendia dindim?
Na última semana, voltei ao Redentorista onde experimentei um trecho de minha vida. Um vídeo correu pelas redes sociais. O cinegrafista de celular foi me levando no que ainda resta do prédio do colégio, em São Raimundo. Câmera ligada e imagens violentas à memória.
Parecia a memória se desmoronando em tijolos quebrados, portas no chão, a antiga quadra de esporte já sem telhado... O jardim seco, sem beija-flores, um noiado na pedra, a piscina do padre Brendan na água verde do lixo...
As recordações da Cidade, talvez, sejam os cipoais de Dédalo e ele a brincar de apagá-las quando menos esperamos.
E gerações de meninas e meninos ainda brincando em meio aos escombros da lembrança. O recreio, as aulas de cantiga do generoso e duro padre Dermival. Uns, apaixonados pela Escola e outros, vingados por causa do bullying e o Redentorista no chão. Tive vontade de chorar.
Acho que vi naquele embaraço de recordâncias o professor Onofre, de Química, gente fina. O bigodão do Erasmo e do Luís Carlos. A professora Sandra, de Literatura, e nós adolescentes babando por ela.
Não sei como terminar esta crônica. Poderia falar da construtora Manhattan, compradora do terreno gigante do Redentorista e que, provável, também poderá virar pó no esquecimento.
Poderia criticar a Prefeitura, o Estado, a construção civil, nós mesmos e o pouco trato que temos com os acervos afetivos edificados, tão necessários para ir aprendendo a viver...
"Nem tudo é eterno...", escreveu-me um idiota de nossa elite fubá. Já pensou o povo de Florença e Coimbra pensando assim? Respondi. Mas adoram ir de férias para o velho mundo. Se bem, querem apenas fazer selfies e ostentar.
Fico por aqui, ruminando algumas memórias. Achando ruim e bom ainda conseguir me lembrar do sequestro de Tia Anastácia e da morte do Minotauro. Não gostei do sacrifício dele, bastava libertar a fada negra.

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