12 de jun. de 2011

AIRTON MONTE E UMA CRÔNICA

   SONO DE BEBÊ

 "Se existia um sujeito inteiramente desprovido da mínima vocação para as lides casadouras, esse indivíduo era o Zé das Couves. Assim alcunhado pela ferina língua do imbatível canelau, por ser um feliz proprietário de uma barraca de verduras na Feira da Gentilandia, cuja maior especialidade tratava-se, obviamente, das couves, embora seu próspero comércio oferecesse, aos habituais fregueses, outros tipos de vegetais, inclusive as populares ervas medicinais, capazes de curar, com inegável eficiência, todos os males do corpo e da mente, desde dor de cotovelo à espinhela caída. Pois o nosso herói abominava, com todas as forças d’alma, sequer pensar em casamento, amarrar-se a uma só mulher pelo resto da vida, perdendo a sua tão prezada liberdade de boêmio incorrigível e sua fama de conquistador barato. Contumaz frequentador de bordéis e terror das domésticas secretárias, o Zé das Couves preservava a sua aprazível solteirice com férrea tenacidade, como quem guarda um tesouro de pirata.

  Namoradas teve aos montes e às mancheias. Dessas indigitadas, algumas chegaram até a ser promovidas à ansiada condição de noiva. Entanto, quando constatavam que o futuro marido não iria mudar seus noctívagos costumes, seus hábitos mulherengos, logo pulavam fora do barco e o Zé das Couves continuava levando a vida que pediu a Deus. Mas, um dia a casa cai e o nosso herói teve que render-se às evidências. Achou de atrair-se perdidamente pelos encantos fatais de uma mulata sestrosa, filha única de um companheiro de trabalho. Namoro vai, namoro vem, a garota cedeu ao pedido de uma prova de amor e findou por engravidar. O pai da moça, açougueiro, conhecido por sua valentia, botou a faca nos peitos do Zé, exigindo a reparação da honra e o Das Couves se viu obrigado a encarar o que tanto temia: o casamento. E assim, casou-se, porém não abriu mão de viver como sempre viveu, na farra, embora restringindo, a contragosto, a esbórnia somente aos fins de semana. A mulher aceitava as fugas do Zé ou fingia aceitar e os dois iam levando o barco matrimonial.

  E assim, entre tapas e beijos, idas e voltas, passaram-se os anos, vieram os filhos e o Zé permanecia o boêmio de sempre, a esposa suportando, ali firme feito uma rocha, as farras do marido, as suas puladas de cerca, parecendo habituada com o esposo que o destino lhe deu. Um belo dia, o nosso Zé chegou em casa, como de hábito, depois de pegar o sol com a mão, mais pra lá do que pra cá, mais morto do que vivo, maltrapilho e maltratado, com um bafo de cachaça daqueles de matar dragão. Deu-se, então, aquela titânica batalha pra conseguir enfiar a chave na porta, abrir cadeados até adentrar o sagrado recesso do lar. Tudo que queria era um copo d’água gelado de trincar os dentes e desmaiar no leito conjugal. Assim, a noite teria um final feliz, com muita rapadura pra matar a ressaca. A noite havia sido comprida demais, como se a noite tivesse medida, rumo, direção. Ora, meu caro Zé, com toda sua experiência, tantos anos de janela, você ainda não sabia, como deveria saber, que a noite é o imprevisível? O inesperado? O desconhecido?

  Afogado nos etílicos vapores, nem percebeu que não havia mais ninguém em casa, a não ser a sua cambaleante figura. Tirar a camisa, descalçar os sapatos até que não foi tarefa das mais difíceis. Na hora de desvestir as calças foi que o bicho pegou. Para um sujeito embriagado, tirar as calças é como escalar o Everest. Balança, balança, balança, mas não cai. Porém, caiu. De repente, estirado o chão do quarto, seus olhos já meio embaçados se deparam com um desaforado bilhetinho: 'Quem é a quenga com quem tu anda agora, pra te fazer dormir fora de casa e eu que fique sem homem'! O Zé foi tomado por uma feroz indignação. Quem dera houvesse mesmo uma quenga. Dormir fora de casa? Como se a noite tivesse sido feita pra dormir. O que no fundo lhe doía mais naquele bilhete era o imperdoável insulto à sua virilidade. Sentiu-se profundamente desmoralizado, mas estranhamente sentiu-se feliz. Ainda era capaz de despertar ciúmes na esposa às cinquenta mal dormidas e encachaçadas primaveras. Pensando nisso, arrastou-se até a cama e dormiu um pesado e inocente sono de bebê."


Airton Monte, médico psiquiatra
airton@opovo.com.br

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Nem o belo logradouro escapa. Triste fim de uma gestão lastimável!