3 de jul. de 2012

Tributo a Raimundo da Barra

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo,

seria uma rima,

não seria uma solução.

Mundo mundo vasto

mais vasto é o meu coração.

  Drummond


  A Palma já não é a mesma sem ti, meu avô. O barulho do chocalho do gado cessou. A brisa agora varre nostálgica a carnaubeira. Nenhum vaqueiro abóia mais. Venderam o seu gado, as terras, as criações e o cavalo cocho. Venderam até as casas da "Rua de Baixo". E o apurado ainda não deu pra muita coisa. Era muito filho, "vô". E ao vaqueiro ainda coube um quinhão... Afinal, ele era vaqueiro, veterinário, conselheiro e confidente. O gado na mão dele não prosperou, mas sempre havia algum leite para a venda e para uns queijos aqui e acolá.
  Das propriedades, não sobrou nada, "vô". Cada herdeiro, antes de receber seu quinhão, já o havia negociado. Setenta anos de trabalho árduo e economia rigorosa foram desfeitos em algumas horas de maquinação e balbúrdia.
  Ninguém mais contemplará aquelas terras com o mesmo amor. Ninguém mais sonhará todas as noites com centenas de reses confinadas nos currais. O sonho acabou, meu avô. O senhor foi definhando, definhando, até não resistir mais e permitir que se apossassem do que era seu.
  A Barra, o Ramalhete, o Pé-do-morro, tudo está triste. Não há nenhum chocalho. Nenhuma cabeça de gado pra quebrar a monotonia do fim de tarde. Há apenas um redemoinho arrastando umas folhas secas. Uma nuvem branca imóvel e uma longa estrada vazia, em cujas margens se erguem uns mameleiros retorquidos. Da casa do Evaristo não se ouve eco algum. O pobre velho também já faleceu. A mulher e os cachorros foram morar na rua. O sol parece dar uma trégua para o que restou do açude-do-meio. Mas logo que o sol esfria vem o vento forte que lambe sempre o que restou de água. Os urubus espreitam a carcaça de uma bezerra moribunda e uns dois campinas retardatários procuram debalde uma poça d’água no regato.
  Tenho saudade, meu velho. Saudade do seu cheiro de mato. Do seu olhar vazio. Da sua palavra firme e até da sua avareza jocosa. Temos todos saudade. Não há mais couro de cabra no cabide, cangalha espalhada pelos cantos, um fardo de milho no chão. A casa grande d’outrora minguou. Abandonaram-na. No corredor, sua rede parece inda armada. Sua tosse seca parece ainda ecoar. No quarto do meu meio o tio ‘Di’ planeja dominar o mundo, mas a diabetes é que o está dominando, insaciável. Na cozinha sem vida a vovó parece dar ordem à empregada. É preciso mexer o doce, guardar o soro pra coalhada da noite, ir atrás do Valdemir.
  Um cabrito berra no quintal. Não, não berra, é mera impressão. Olho a despensa vazia. Tenho a sensação de estar sendo seguido. Ouço o arrastar de um chinelo de couro. Não me assombro, sigo adiante taciturno.
  Fecho o velho portão. De longe, o ‘Rabo-da-gata’ deserto, já nem lembra os velhos tempos. Apenas uma miragem sua. Miragem. Tudo aqui e o senhor tão distante. Num cemitério monótono de uma terra que não lhe agrada. Após um velório apressado, cercado de alguma lamentação e uns inevitáveis planos de partilha, deixaram-no em paz. Numa planície aguada duma manhã de verão. No céu, uma barra acenava com um inverno promissor. Toda a terra iria florir, a vazante seria inundada, a rês leiteira... Mas você não estará aqui. Já terá findado o último capítulo. Fecharam o seu livro e o devolveram à biblioteca da memória.
  - Adeus, meu avô!

  Etim, Coreaú, julho de 2004


 (Do Blogue Diário de um Navegante)

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