"CONSCIÊNCIA DE MONTURO
Pelo tino arcaico dos
burgomestres da Aldeia sobrará sempre para o meio ambiente o sacrifício
para se ter um aldeamento, supostamente, melhor. E vai-se, no lombo de
um discurso autoritário, assistindo a reconstrução de uma Cidade em que
grilos e castanholeiras são menos importantes que viadutos e carros.
Sim,
pontes e automóveis podem favorecer as travessias. Mas são menos
essenciais que borboletas estaladeiras que do doce das castanholas, na
cadeia da vida breve-bonita-e-longa delas, trabalham para inventar o que
respiramos. Isso é presteza ambiental.
É que os chefes da
Aldeia, do Paço e do Palácio, por eles, ainda rebolariam no mato o que
há em seus penicos. Uma consciência de monturo ainda os possui, apesar
de viagens pelo mundo velho, os títulos de arrotar e a idade das
raposas. Até um desembargador foi (ou se deixou ir) na
conversa fiada de que 'mobilidade urbana' só se resolve se 'mais
pedacinho' da floresta for ao chão. De vinte em vinte metros, aos
pouquinhos, construíram um shopping, 300 prédios (com quintal
privilegiado), trinta favelas, mais isso, aquilo e aquilo outro... A
Cidade terá, mesmo, mais vantagens se o Cocó for abocanhado outra vez
em seus limites já acuados? Terá não, excelência. Suspenda o juízo e
experimente pensar um bocadinho nos tempos que se esquadrinharão. No
óbvio. O senhor duvida que daqui a quatro anos a Aldeia terá
muito mais carros e engarrafamentos do que hoje? Que uma nova tsunami de
IPI zero me fará trocar o carro ou comprar, finalmente, meu primeiro
Landau? Que o transporte público daqui será de fazer inveja à Paris? Que
ali e acolá o trânsito engargalado será uma joia por causa de dois
viadutos? Vai não, meritíssimo. E aí, daqui a quatro anos, o
burgomestre da hora (que provavelmente será o mesmo de hoje) mais uma
vez invadirá o Cocó para fazer pontes salvadoras. Matará novamente as
árvores, espantará as borboletas e dará língua e dedo (porque não pode
ser contrariado) para o João teimoso e a Rosa das resistências.
Dois
viadutos, ali, serão como um casal de hipopótamos no banheiro do
senhor, desembargador. Imprudente, sobrante, inoportuno e 'estoporante'
para dizer o menos. Atente, meritíssimo! Derrubaram tanto a
floresta que o Cocó foi se amiudando com os seus. O rio se empanturrou
de areia, não navega mais. E, no que resta de mata, há garrafas de
Coca-cola e condomínios com TVs a cabo. Tá bom, já deu.
Convido
o senhor para passar uns dias comigo, espreitando a vida que se vai
indo debaixo de um flamboyant vermelho na esquina da Engenheiro Santana
Júnior com a Pizza Hut. Lá, acompanho os dias de cinco espécies de
pássaros: casais de suruiri, lavadeiras-de-maria, pardais, rolinhas e
galos-campina. Uns urbanos e outros que se tornaram. Estão por
ali porque o lixo da pizzaria e de outros empreendimentos os 'favorecem'. Tanto comem os restos das massas como caçam os insetos que
nascem das porcarias mal ensacadas e encostadas no tronco da árvore
bonita e nas coxias do entorno do pé de pau.
Quero dizer o que
com a história dos passarinhos e o flamboyant? O prejuízo de 94 árvores
no chão pode ser pequeno diante da repercussão avassaladora dos
viadutos para o que resta de floresta, rio e os moradores dali. Gente e
bicho. Se o Cocó já fosse um parque, tivesse pai e mãe
registrados em cartório, a inteligência municipal e estadual teria de
arranjar outro jeito que não fossem dois elevados. Por muito
tempo, acreditei no que escreveu ou disse Fausto Nilo em entrevistas:
que o problema de 'mobilidade urbana' na Aldeia não se resolve com
rasgamento de novas avenidas, ponte estaiada e construção de viadutos.
Transporte coletivo de vergonha e segurança para ir e vir poderiam nos
tirar do mar de carros em que vamos nos afogando.
E sem tronco para nos agarrar."
UM ESPAÇO PARA LIVROS, CULTURA NORDESTINA E FÓRUM DA ZONA NORTE (CE). (85) 985863910
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