Leonardo Boff
É com muita tristeza que escrevo este artigo no final
da tarde desta quarta-feira, após acompanhar as falas dos ministros do
Superemo Tribunal Federal. Para não me aborrecer com e-mails rancorosos,
vou logo dizendo que não estou defendendo a corrupção de políticos do PT
e da base aliada, objeto da Ação Penal 470, sob julgamento no STF. Se
malfeitos foram comprovados, eles merecem as penas cominadas pelo Código
Penal. O rigor da lei se aplica a todos. Outra coisa, entretanto, é a espetacularização do julgamento
transmitido pela TV. Aí é ineludível a feira das vaidades e o vezo
ideológico que perpassa a maioria dos discursos.
Desde A Ideologia Alemã, de Marx/Engels (1846), até o Conhecimento e Interesse,
de J. Habermas (1968 e 1973), sabemos que por detrás de todo
conhecimento e de toda prática humana age uma ideologia latente.
Resumidamente, podemos dizer que a ideologia é o discurso do interesse. E
todo conhecimento, mesmo o que pretende ser o mais objetivo possível,
vem impregnado de interesses.
Pois, assim é a condição humana. A cabeça pensa a partir de onde os
pés pisam. E todo o ponto de vista é a vista de um ponto. Isso é
inescapável. Cabe analisar política e eticamente o tipo de interesse, a
quem beneficia e a que grupos serve e que projeto de Brasil tem em
mente. Como entra o povo nisso tudo? Ele continua invisível e até
desprezível? A ideologia pertence ao mundo do escondido e do implícito. Mas há
vários métodos que foram desenvolvidos, coisa que exercitei anos a fio
com meus alunos de epistemologia em Petrópolis, para desmascarar a
ideologia. O mais simples e direto é observar a adjetivação ou a
qualificação que se aplica aos conceitos básicos do discurso,
especialmente, das condenações.
Em alguns discursos, como os do ministro Celso de Mello, o
ideológico é gritante, até no tom da voz utilizada. Cito apenas algumas
qualificações ouvidas no plenário: o mensalão seria "um projeto
ideológico-partidário de inspiração patrimonialista”, um “assalto
criminoso à administração pública”, “uma quadrilha de ladrões de beira
de estrada” e um “bando criminoso”. Tem-se a impressão de que as
lideranças do PT e até ministros não faziam outra coisa que arquitetar
roubos e aliciamento de deputados, em vez de se ocuparem com os
problemas de um país tão complexo como o Brasil.
Qual o interesse, escondido por detrás de doutas argumentações
jurídicas? Como já foi apontado por analistas renomados do calibre de
Wanderley Guilherme dos Santos, revela-se aí certo preconceito contra
políticos vindos do campo popular. Mais ainda: visa-se a aniquilar toda a
possível credibilidade do PT, como partido que vem de fora da tradição
elitista de nossa política; procura-se indiretamente atingir seu líder
carismático maior, Lula, sobrevivente da grande tribulação do povo
brasileiro e o primeiro presidente operário, com uma inteligência
assombrosa e habilidade política inegável. A ideologia que perpassa os principais pronunciamentos dos ministros
do STF parece eco da voz de outros, da grande imprensa empresarial que
nunca aceitou que Lula chegasse ao Planalto. Seu destino e condenação é a
Planície. No Planalto poderia penetrar como faxineiro e limpador dos
banheiros. Mas nunca como presidente.
Ouvem-se no plenário ecos vindos da Casa Grande, que gostaria de
manter a Senzala sempre submissa e silenciosa. Dificilmente, se tolera
que através do PT os lascados e invisíveis começaram a discutir política
e a sonhar com a reinvenção de um Brasil diferente. Tolera-se um pobre
ignorante e mantido politicamente na ignorância. Tem-se verdadeiro pavor
de um pobre que pensa e que fala. Pois, Lula e outros líderes populares
ou convertidos à causa popular como João Pedro Stedile, começaram a
falar e a implementar políticas sociais que permitiram uma Argentina
inteira ser inserida na sociedade dos cidadãos.
Essa causa não pode estar sob juízo. Ela representa o sonho maior
dos que foram sempre destituídos. A Justiça precisa tomar a sério esse
anseio a preço de se desmoralizar, consagrando um status quo que nos faz
passar internacionalmente vergonha. Justiça é sempre a justa medida, o
equilíbrio entre o mais e o menos, a virtude que perpassa todas as
virtudes (“a luminossísima estrela matutina” de Aristóteles). Estimo que
o STF não conseguiu manter a justa medida. Ele deve honrar essa
justiça-mor que encerra todas as virtudes da polis, da sociedade
organizada. Então, sim, se fará justiça neste País.
(Colaboração: Eliton Meneses - engenheiro)
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